domingo, 5 de dezembro de 2010

Despedida


Ler ouvindo: Satélite Kingston - Cáncion de despedida.


E assim larguei meus conceitos e seus beijos, e finalmente aqui no fim da estrada, em cima da maca de alguma emergência de um hospital sem vida, onde mortos circulam de branco tentando vencer o que não se vence, protelando o sofrimento enquanto eles mesmos vão morrendo. Acho que foi nesse meio, entre tanta amargura e falta de esperança que me veio uma lembrança boa, como se em uma fotografia velha ainda desse para ver umas ondas turvas batendo no vermelho do meu peito. Uma lembrança simples, talvez a escolhida por mim para ser a minha última memória, antes de perder minha consciência, que para ser sincero nunca foi muita. È engraçado que só assim, com o tempo marcado, é que pensamos em mudar o que não se muda, em viver o que não foi vivido, é quando queremos quebrar a rotina, cuspir no mundo sem ter saliva. Tomar a última dose, ouvir a última música, dar o último trago e tentar abrir um sorriso amargo, eu sei que nessa hora você, continua segurando minha mão, horário de visita, amigos e família começam a entrar na sala, pena, ternura e amor tudo se confunde nessa hora, mesmo estando em coma, eu espero que você sinta que ainda estou consciente, não falar comigo apenas por falar, como se apenas meu frágil corpo estivesse em sua frente. Passa a mão nos meus cabelos, encosta a mão no meu peito, eu sinto seu desespero, mas também tenho medo, ouvi rumores que os remédios não funcionam, falência múltipla dos órgãos, hemorragia interna e insuficiência respiratória, pelo visto meu corpo se perdeu , e meu peito de tanto ser retalhado, resolveu descansar de vez. Eu sempre quis saber, o que pararia primeiro ,meu coração ou minha mente, reconheço que nunca tive uma saúde muito boa, e sempre abusei dos vícios, mas desconfiava que meu peito cessaria primeiro e como conseqüência todo o resto. È evidente, tantos desamores e tantas dores, eu deveria no mínimo agradecer, se é que existe um deus, pelo peito tão forte que a cada impacto sofrido me segurava, mesmo caído, a continuar e seguir em pé. Engraçado como eu ainda sinto seu cheiro e seus dedos trêmulos, agora tocam o meu pescoço. Eu queria poder te olhar pela última vez, pena não ter mais força para abrir os olhos, imagino você usando aquele vestido roxo, cabelos presos em parte, olhar fixo, e maquiagem borrada das lágrimas . Acho que esse é meu maior sofrimento, maior que qualquer dor e incômodo causado pela doença. Maior que me ver preso em um inferno dentro de mim, maior que não ver o mar, maior que passar meus últimos dias em cima dessa cama, enquanto eu queria andar, ver os bairros que freqüentei, o gosto do café, o cheiro das ruas velhas e sujas que pessoas tão perdidas quanto eu, continuam a passar, tudo isso não é pior que te ter tão perto, como há anos eu não tinha e não poder abrir os olhos para te ver. E assim eu me arrependo de todas as oportunidades que tive em te visitar, todas as palavras que eu guardei e tantas outras que joguei fora, Nessa hora eu escutei pessoas saindo da sala, o tempo mais uma vez me consumindo, então vou mandar essa lembrança com toda força para que ela possa se projetar diante dos seus olhos, antes que os médicos peçam para você se retirar, antes dos aparelhos pararem de funcionar, eu queria te mostrar, aquele primeiro carnaval, minha camisa listrada e nossas alegrias que pareciam não ter mais fim. Uma pena que só tenha força pra te imaginar ao meu lado, já que no meu último dia você não veio, agora eu só escuto o silêncio, e tenho que guardar a lembrança que escolhi para sempre comigo.

2 comentários:

  1. Felizmente isto não vai ser relato de nossas vidas: escollhemos viver desde cedo, meu velho.

    Curti o texto, muito bem escrito. Aguardo o livro.

    Abraco,
    Mario

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  2. Se eu te falar que foi um dos textos mais bonitos que eu já li, tu vai acreditar?

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